ESCLARECIMENTOS SOBRE A DECISÃO DO STF SOBRE RJU DO ESTADO DO ACRE

Seguem alguns esclarecimentos sobre a decisão proferida no Agravo em Recurso Extraordinário n. 1.306.505, que ilustra a controvérsia do Tema 1157 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal.

Em 25 de março do corrente, foi finalizado o julgamento virtual do referido recurso, nos seguintes termos:

O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.157 da repercussão geral, conheceu do agravo para, desde logo, dar provimento ao recurso extraordinário do Estado do Acre, para denegar a segurança, nos termos do voto do Relator. Foi fixada a seguinte tese: “É vedado o reenquadramento, em novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração, de servidor admitido sem concurso público antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, mesmo que beneficiado pela estabilidade excepcional do artigo 19 do ADCT, haja vista que esta regra transitória não prevê o direito à efetividade, nos termos do artigo 37, II, da Constituição Federal e decisão proferida na ADI 3609 (Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJe. 30/10/2014)”.

Pertinente, assim, um resgate da situação discutida no processo a fim de que se possa entender a repercussão da decisão proferida.

Antes disso, contudo, é essencial relatar a existência da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.609, que teve por objeto dispositivo da Emenda à Constituição Estadual do Acre de n. 38/2005 com a seguinte redação:

Art. 37. Os servidores das secretarias, autarquias, fundações públicas, de empresas públicas e de economia mista, dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que estão em exercício e não tenham sido admitidos na forma prevista no art. 37 da Constituição Estadual, estável ou não por efeito do art. 19 do ADCT da Constituição Federal, que ingressaram no serviço público até 31 de dezembro de 1994, ficam efetivados e passam a integrar quadro temporário em extinção à medida que os cargos ou empregos respectivos vagarem, proibida nova inclusão ou admissão, a qualquer título, assim como o acesso a quadro diverso ou a outros cargos, funções ou empregos.

A ação foi julgada procedente para reconhecer a inconstitucionalidade da norma porque, desde a promulgação da Constituição de 1988, por força de seu art. 37, inciso II, a investidura em cargo ou emprego público depende da prévia aprovação em concurso público por afronta ao princípio do concurso público.

Afirmou-se, ainda, que a norma impugnada ampliou incontestavelmente o conteúdo do art. 19 do ADCT da Constituição Federal, que garantiu, tão somente, a estabilidade excepcional – não a efetivação – dos servidores da administração direta, autárquica e das fundações públicas, o que não inclui os empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista.

Ocorreu, entretanto, a modulação dos efeitos da decisão para que se produzissem a partir de doze meses contados da publicação da ata de julgamento, tempo hábil para a realização de concurso público, nomeação e posse de novos servidores, evitando-se, assim, prejuízo aos serviços públicos essenciais prestados à população, bem como, em sede de embargos de declaração, para ressalvar dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade os aposentados e aqueles servidores que, até a data de publicação da ata do julgamento, tenham preenchido os requisitos para a aposentadoria.

Esclarecido tal aspecto, observa-se que o recurso extraordinário ora referido tem origem em Mandado de Segurança impetrado por servidor do Estado do Acre admitido em 1986, sem concurso público, para trabalhar na Secretaria da Fazenda do Estado sob o vínculo celetista.

Após o advento da Constituição Federal de 1988, o Estado do Acre publicou a Lei Complementar n. 39, de 29/12/1993, instituindo o Regime Jurídico Único – RJU dos servidores públicos estaduais. Referida norma previa a criação de dois quadros de pessoal: o permanente, constituído de cargos e funções, e o provisório, em extinção, composto de pessoal não habilitado em concurso. Houve a previsão expressa de que os servidores incluídos no quadro provisório não aufeririam as vantagens atinentes ao plano de carreira.

A despeito de a situação do autor da ação enquadrar-se nas hipóteses atinentes ao quadro provisório, a Administração, desde logo, incluiu-o no plano de carreira. Aparentemente, esse procedimento foi adotado de forma ampla, de modo que muitos trabalhadores que haviam ingressado sem concurso público receberam o mesmo tratamento.

Após anos de concessão, ao autor, de todas as vantagens atinentes ao plano de carreira (inclusive com o enquadramento na Lei n. 1.419, de 01/11/2001, que instituiu o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração dos Servidores da Secretaria de Estado da Fazenda), não lhe foi proporcionado o reenquadramento assegurado pela Lei n. 2.265, de 31/03/2010, com as alterações promovidas pela Lei n. 3.104, de 29/12/2015, do qual decorreria evolução funcional. Apresentado requerimento administrativo pleiteando o reenquadramento, foi indeferido, ensejando a impetração do mandado de segurança em questão.

O objeto da ação, portanto, foi obter o citado reenquadramento. Ressalvou-se, na fundamentação da inicial e durante todo o processo, que o julgamento da ADI 3.609 não repercutiria na situação do impetrante, visto que sua transposição ao regime estatutário e enquadramento em plano de carreira não se deu por força do disposto na EC n. 38/2015, objeto da referida ação, mas bem antes, quando da própria instituição do Regime Jurídico Único, em 1993.

Assim, o fundamento do pedido assentou-se na necessidade de respeito aos princípios da confiança e da segurança jurídica, que limitariam a possibilidade de a Administração revisar seus atos, tendo em vista que a situação do autor estava consolidada há muitos anos.

O Tribunal de Justiça do Acre concedeu a segurança com base nos princípios acima referidos, confirmando jurisprudência que já vinha adotando em casos semelhantes.

O Estado do Acre interpôs, então, recurso extraordinário, que, não tendo sido admitido pelo Tribunal local, foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal por força da interposição de agravo.

Reconhecida a repercussão geral da controvérsia, restou esta assim descrita:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, LV, e 37, II, da Constituição Federal, a possibilidade de reenquadramento, em novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração, do servidor admitido sem concurso público antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 e em período não abrangido pela estabilidade excepcional do artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com fundamento na segurança jurídica e na proteção à confiança.

Ao ser julgado dito recurso, foram estabelecidas as seguintes premissas:

a) segundo a Constituição (art. 41), a efetividade é pressuposto da estabilidade, sendo considerado estável o servidor aprovado em concurso público que tenha cumprido três anos de efetivo exercício;

b) o art. 19 do ADCT trouxe hipótese excepcional de estabilidade aos servidores admitidos sem concurso público que estivessem em exercício há, no mínimo, cinco anos quando da promulgação da CF/88;

c) a estabilidade excepcional não implica o direito dos servidores de usufruírem dos benefícios legalmente previstos para os ocupantes de cargos efetivos que ingressaram mediante concurso público, conforme reiterados precedentes da Corte (a jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que os servidores públicos beneficiados pelo art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT teriam direito à estabilidade, não se lhes conferindo as vantagens privativas dos ocupantes de cargo efetivo, para o qual se exige concurso público – ARE 1238618 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, DJe 04/03/2020);

d) a diferença entre os institutos previstos nos arts. 41 da CF/88 e 19 do ADCT foi reforçada quando do julgamento da ADI n. 3609, julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Emenda à Constituição do Acre n. 38/2005;

e) no caso ilustrado no recurso extraordinário, o servidor sequer submeteu-se a certame público para ingresso no cargo, e mesmo que fosse beneficiado com a estabilidade excepcional do artigo 19 do ADCT, ainda assim não poderia figurar em plano de carreira de servidor efetivo admitido por concurso;

f) segundo firme entendimento do STF, as situações flagrantemente inconstitucionais não podem ser consolidadas pelo decurso do tempo;

g) em conclusão, é inconstitucional a efetivação de servidor admitido sem concurso público, ainda que beneficiado pela estabilidade excepcional da parte transitória da CARTA MAGNA, o que obsta qualquer reenquadramento em Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração criado para servidores efetivos.

Em relação ao julgamento do caso concreto, consignou-se, ainda, que fica o impetrante dispensado da devolução de valores eventualmente recebidos de boa-fé até a data de conclusão do presente julgamento tendo em vista a natureza jurídica de verba alimentar das quantias percebidas.

Nesses termos, embora a controvérsia submetida a debate em sede de repercussão geral contemplasse a hipótese de servidor não abrangido pela estabilidade excepcional do art. 19 do ADCT (que era o caso dos autos), a decisão acabou por também abordar a situação daqueles enquadrados em tal dispositivo, reiterando o entendimento pacificado da Corte no sentido de que o servidor ingresso sem concurso público antes da CF/88, contemplado ou não pela dita estabilidade excepcional, não faz jus à percepção de vantagens destinadas a servidores efetivos – motivo pelo qual não pode ser reenquadrado em novo plano de cargos.

Do ponto de vista estrito da questão debatida e da tese fixada, bem como dadas as discussões em pauta no âmbito do serviço público federal, inclusive na seara judicial, a decisão não afeta diretamente os servidores públicos federais ou os processos nos quais pleiteiam direitos funcionais.


Entretanto, o precedente mostra-se perigoso sob a ótica de que tramita, perante o STF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.968/DF, proposta no ano de 2003 pelo então Procurador-Geral da República contra o caput do art. 243 da Lei n. 8.112/1990, que transpôs ao Regime Jurídico Único os servidores dos Poderes da União, dos ex-Territórios, das autarquias, inclusive as em regime especial, e das fundações públicas, regidos pela Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952 - Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, ou pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1o de maio de 1943, exceto os contratados por prazo determinado. Nós atuamos neste feito representando a CONDSEF e o SINASEFE, que foram admitidos como amicus curiae.

A alegação de inconstitucionalidade funda-se na afronta à regra do concurso público constante do art. 37, II da CF, já que o dispositivo não assegurou apenas a transposição dos concursados, mas também dos demais empregados e servidores anteriormente admitidos. O processo encontra-se concluso ao relator, Min. Gilmar Mendes, desde 21/07/2020.

Pertinente observar, contudo, que embora a tese fixada no Tema n. 1.157 estabeleça orientação preocupante em relação ao entendimento a ser adotado quando do julgamento da ADI em questão, há outro aspecto relevante a ser considerado, que diz com os efeitos que têm sido atribuídos pelo STF às decisões que profere sobre questões análogas.

É que, como consignado no acórdão dos embargos de declaração opostos contra a decisão proferida na ADI n. 3.609, julgados em 14/06/2021, o STF tem estabelecido, em situações nas quais julga inconstitucional o ingresso de servidores públicos diante da ausência de concurso, a modulação dos efeitos das decisões a fim de ressalvar de sua aplicação aqueles que, quando da publicação da ata de julgamento, já estejam aposentados ou tenham cumprido os requisitos para se aposentar (a exemplo do ocorrido na ADI n. 4.876, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe de 1º/07/2014 e na ADI n. 1241, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe de 02/08/2017).

Dado que a transposição ao RJU ocorreu há mais de 30 anos, é provável que, na data em que for julgada a ADI 2.968, todos os servidores cujo ingresso seja reputado inconstitucional já estejam aposentados ou tenham cumprido os requisitos para se aposentar, de modo que, se adotado o entendimento acima relatado, as repercussões concretas da decisão possivelmente não serão tão extensas.

O ideal para os servidores públicos federais é que esta ADI continue repousando, o que leva a que não seja interessante chamarmos muita atenção para esta discussão.