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Marcas da era Collor
A luta dos servidores públicos anistiados pela reintegração aos antigos cargos já dura 24 anos. Os que conseguem ratornar aos quadros lidam com preconceito e problemas de adaptação
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Republicação:07/12/2018 14:50Atualização:07/12/2018 15:24
Grupo de anistiados do governo Collor: mais de duas décadas de luta pela volta ao serviço público
O início de uma nova década seria marcado por grandes transformações no cenário político brasileiro. Em 1990, a posse do primeiro presidente eleito por voto direto após o período militar causaria cicatrizes em aproximadamente 150 mil famílias brasileiras. A era Collor dava seus primeiros passos para se transformar em um dos governos mais arbitrários da história do país. Após tomar posse do cargo, em março de 1990, o ex-presidente e atual senador alagoano sancionou a Lei 8.029, em 12 de abril do mesmo ano, que previa extinguir fundações, privatizar empresas públicas e fundir ministérios. A nova lei gerou demissões em massa após a sua promulgação em todos os estados brasileiros, sem justa causa nem grandes esclarecimentos.
Entre os locais impactados pela nova gestão presidencial estavam mais de 20 autarquias, fundações, entidades e ministérios de diversas frentes como a Fundação de Assistência Escolar (FAE), o Ministério do Interior (MI), a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU) e a Portobrás, responsável pela administração dos portos brasileiros.
Os servidores públicos demitidos iniciaram uma movimentação coletiva por meio de sindicatos e associações, o que pressionou o governo do sucessor de Collor, Itamar Franco, a aprovar a Lei da Anistia 8.878/94, que determina a reintegração dos funcionários públicos demitidos durante o governo Collor aos cargos anteriormente ocupados, com equiparação de salário.
Amilton Silva, Presidente da Associação Nacional dos
Beneficiados pela Lei 8.878/94: "No governo
Fernando Henrique testemunhamos um proce-
dimento desgastante de lentidão proposital para
prejudicar os antigos e atuais servidores, isto terá um fim, pois na justiça os juízes tem confirmado nossa tese"
Apesar da vitória com a aprovação da Lei de Anistia, o governo do ex-presidente mineiro não teria tempo hábil para colocá-la em prática. Com a chegada do governo de FHC, mais espera: mesmo com o respaldo jurídico, em oito anos de governo não houve retorno de anistiados ao serviço público. "No governo Fernando Henrique houve procrastinação do processo. Testemunhamos um procedimento desgastante de lentidão proposital para prejudicar os antigos servidores”, avalia Amilton Silva, presidente da Associação Nacional dos Beneficiados pela Lei 8.878/94 (Anbene), formada por 1.800 anistiados.
No primeiro mandato do ex-presidente Lula, o governo daria um importante passo com o Decreto 6.077/2007, que determinou a criação da Comissão Especial Interministerial (CEI), organizada pelo Ministério do Planejamento e que envolvia a participação de órgãos interessados em reintegrar os antigos servidores.
Segundo o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), a comissão deferiu até o momento 14.279 pedidos de anistia, dos quais 12.694 tiveram retorno ao emprego público anteriormente ocupado. Outros 504 não terão retorno por motivos como falecimento, aposentadoria por invalidez ou renúncia. De acordo com a presidente da comissão, Érida Feliz, “1.081 anistiados estão com processos em fase de instrução para retorno aguardando impacto orçamentário ou definição de local”. Segundo o MPOG, o processo de reintegração foi iniciado em 2003 e continua em andamento.
Entre os casos que se enquadram em invalidez
está o de Ivan Pereira Lacerda, que trabalhou
como motorista do extinto BNCC:"Estou no meu
direito de querer meu dinheiro de volta"
Entre os 504 servidores que não retornarão ao cargo está o marido da professora aposentada Olinda Alencar Monteiro, Aldo Coutinho Monteiro. Falecido em 2005 após complicações de saúde ocasionadas pelo diabetes, ele fazia parte do quadro do extinto Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC), onde trabalhou por 12 anos. “No dia da demissão vivemos aquele terrorismo do governo Collor que víamos na TV. Nossos quatro filhos estudavam em escola particular. Meu marido entrou em desespero. Essa situação difícil só poderia resultar em duas coisas: divórcio ou ainda mais união entre nós. Optamos por nos manter unidos”, diz Olinda.
Assim como milhares de famílias de anistiados, o casal teve de fazer readaptações com um novo orçamento doméstico e precisou vender bens para pagamento de dívidas, além de adaptar a rotina de trabalho. “Lembro que na época precisei ampliar a jornada para três turnos para conseguir pagar as contas”, afirma a aposentada.
Clique para ler o que diz a Lei 8.878/94
Não demorou muito para que os ex-funcionários do BNCC se organizassem para reivindicar seus direitos. A militância de Aldo era marcada por grandes mobilizações e visitas ao Congresso. Foram necessários 15 anos após a demissão para chegar à novidade tão aguardada: em 2005, foi publicado no Diário Oficial a portaria que determinava a reintegração dos servidores do BNCC demitidos por Collor. Apesar da boa notícia, a família não imaginava que Aldo não usufruiria da conquista que militou por tantos anos. Em 17 de dezembro de 2005 ele faleceu.
Em fevereiro de 2006, Olinda apresentou a documentação pendente com a certidão de óbito do marido. "Eles disseram que não sabiam o que iriam fazer porque, além do meu caso, existiam 13 casos de viuvez e que teríamos de aguardar. Como ele morreu na espe- rança que um dia a justiça fosse feita, eu não vou desistir”, relata.
Mesmo com a convocação de retorno publicada no Diário Oficial, muitos anistiados do governo Collor perderam o prazo de 30 dias de apresentação aos respectivos órgãos. Para tentar com- bater o prazo curto, a Comissão Per- manente de Anistiados do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no DF (Sindsep-DF), criada em 1992, elaborou dois projetos de lei que previam a reabertura do prazo de requerimento de retorno ao serviço (Projeto de Lei nº 372 de 2008 e Projeto de Lei nº 4.786 de 2012). Ambos foram vetados pela presidente Dilma Rousseff, que alegou questão orçamentária e vício de origem. Para ela, o pedido teria de vir do Poder Executivo. A decisão pode ser revista em apenas dois casos: por meio de um decreto presidencial ou com a aprovação do Congresso. “Quando foi eleita, Dilma prometeu reabrir o prazo. Além de não reabrir, ela vetou os dois projetos de lei. O filme está se repetindo e, assim como Collor, ela está fundindo ministérios”.
De acordo com levantamento do Sindisep-DF, a maioria das empresas que empregavam os anistiados foi extinta – logo, eles são realocados em órgãos que podem ser totalmente diferentes, mas com o mesmo cargo. “Há duas décadas, estamos fazendo esforço para garantir que essas pessoas sejam reparadas e voltem a seus postos de trabalho em condições justas.” Apesar do retorno, muitos anistiados sofrem problemas como o enquadramento salarial, a contribuição previdenciária e o assédio moral após a reintegração. “Muitos deles carregam papéis e fazem tarefas que poderiam ser destinadas a um office boy. Essa reintegração nunca vai reparar totalmente o que essas pessoas sofreram”, afirma Oton.
Depois de mais de 20 anos fora do mercado de trabalho público, tarefas vistas como básicas podem se tornar um grande desafio aos reintegrados. Com a tecnologia avançada em ambientes de trabalho, muitos anistiados precisam de cursos de reciclagem para a readaptação ao trabalho. O grupo que retorna apresenta diversas queixas, como falta de avaliação de desempenho, o não recebimento de gratificações. “É dever do Estado garantir que esse anistiado que retornou ao trabalho tenha plenas condições de exercer sua função, com cursos de reciclagem, qualificação e a ambientação do servidor. O anistiado tem direito a ser ambientado como qualquer servidor quando ingressa ao serviço público. Nos casos em que isso não é cumprido, temos acionado nossos advogados para tomarem as providências cabíveis”, esclarece Amilton Silva, presidente da Associação Nacional dos Beneficiados pela Lei 8.878/94.
Olinda Monteiro, viúva de Aldo Coutinho
Monteiro, anistiado que faleceu antes de ser
reintegrado ao cargo:"Vivemos um terrorismo"
“A questão de assédio moral vem de todos os lados. São poucos órgãos que têm dado cursos de qualificação a esses funcionários reintegrados. Não queremos ter regalias, mas sim ser tratados com igualdade de condições. Os servi- dores foram colocados como celetistas. O problema é que fica um ambiente de duplo regime na administração pública direta, que causa um constrangi- mento. Há servidores que acham que somos alienígenas. Se o anistiado fizer qualquer irregularidade, ele recebe um processo administrativo interno para apuração do caso”, diz Amilton.
Após a demissão em massa, muitos anistiados deixaram de contribuir para a Previdência. Mesmo em idade avançada e com problemas graves de saúde, esses casos não podem entrar com pedido de aposentadoria. “Muitos colegas estão indo trabalhar de bengala, outros com Alzheimer. Nesses casos entramos com uma ação judicial pedindo aposentadoria por invalidez ou aposentadoria especial”, esclarece Amilton. Entre os casos que se enquadram em invalidez está o de Ivan Pereira Lacerda, que trabalhou como motorista do extinto Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC) entre 1982 e 1990.
Na época da decisão de Collor, o ex-servidor estava de férias na Bahia. “Achei estranho quando fui sacar meu dinheiro e ele estava confiscado. Assim que voltei para Brasília tinha perdido meu emprego”, relata. A solução temporária para a situação de Ivan foi apelar para trabalhos temporários como motorista e chegou a abrir um bar próximo do antigo endereço residencial. “Conheço gente que cometeu suicídio e outros ficaram depressivos por conta da demissão. Graças a Deus, apesar desse problema, consegui tocar o barco”, ressalta. No último emprego, na empresa de ônibus Grupo Amaral, ele sofreu um acidente de trabalho que limitou os movimentos de uma das pernas e foi aposentado por invalidez pelo INSS. O aposentado perdeu o prazo de retorno para a anistia e vai entrar com um mandado de segurança para tentar a reintegração. “Estou no meu direito de querer o meu emprego de volta”, ressalta Ivan, que garante ter disposição para dirigir veículos pequenos.
Consuelo Gomes foi afastada do emprego durante o governo Collor: hoje, ocupa um cargo no Ministério da Ciência e Tecnologia
Regime de trabalho e equiparação salarial
Com o retorno de grande parte dos anistiados em 2008, o governo pediu o comprovante de rendimentos durante o período de trabalho que antecedeu as demissões em massa para atualização da faixa salarial. Aos que não apresentaram a documentação, o governo criou uma tabela com o índice geral da Previdência e incluiu os anistiados automaticamente. Mas a falta de equiparação de salário vem afetando a vida financeira de Consuelo Gomes. Ao iniciar o trabalho no serviço público no ministério da Ciência e Tecnologia (mCT), ela tinha planos de potencializar a carreira de historiadora com cursos de mestrado e doutorado. A servidora assumiu o cargo de técnica em 1985 e trabalhou até 1990. Depois da demissão em massa do governo Collor, ela optou por seguir carreira em empresas privadas.
Ao retornar ao antigo cargo, surpreendeu-se. “Algumas injustiças foram corrigidas, mas outras continuam e são perdas irreparáveis. O governo Dilma não fez nada pelo anistiado nem pelo reintegrado”, ressalta Consuelo, que está entre os 140 reintegrados. Para se adaptar ao trabalho, acompanhar os avanços tecnológicos e as mudanças geradas pela nova ortografia, Consuelo fez por conta própria cursos de informática e português. “Todos nós sofremos discriminação pela idade e por desconhecimento da tecnologia. Somos tratados como incompetentes”, relata a servidora.
Outro desafio enfrentado pelos anistiados que voltaram aos cargos é a reintegração em regime de trabalho diferente, no caso de órgãos que foram extintos. A Lei 8.112 prevê um regime administrativo único no funcionalismo público, o que garante a todos os anistiados o retorno ao trabalho no regime estatutário. Na prática, alguns anistiados foram enquadrados como celetistas. “Temos um projeto-decreto no Legislativo para corrigir o decreto 6.077, que regulamentou a Lei 8.878. Lamentavelmente, tivemos de entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo pedindo uma correção de acordo com a lei dos anistiados. esse decreto encurta a lei sorrateiramente. A lei estabelece regime administrativo único e um decreto não pode se sobrepor uma lei”, esclarece Amilton Silva, presidente da Anbene. Para ele, o grande desafio é fazer com que o governo trate os anistiados como reintegrados, e não como recém-admitidos. “Não queremos regalias, mas sim igualdade de direitos. São 24 anos lutando contra um processo de lentidão que parece não ter fim."